quarta-feira, 21 de julho de 2010

Carta do Pe. Martin Lasarte, SDB

Segue carta do padre salesiano uruguaio Martín Lasarte, que
trabalha em Angola, de 06 de abril e endereçada ao jornal
norte-americano The New York Times. Nela expressa seus sentimentos
diante da onda midiática despertada pelos abusos sexuais de alguns
sacerdotes enquanto surpreende o desinteresse que o trabalho de
milhares religiosos suscita nos meios de comunicação.

Eis a carta.

Querido irmão e irmã jornalista: sou um simples sacerdote
católico. Me sinto orgulhoso e feliz com a minha vocação. Há
vinte anos vivo em Angola como missionário. Sinto grande dor pelo
profundo mal que pessoas, que deveriam ser sinais do amor de Deus,
sejam um punhal na vida de inocentes. Não há palavras que
justifiquem estes atos. Não há dúvida de que a Igreja só pode
estar do lado dos mais frágeis, dos mais indefesos. Portanto, todas
as medidas que sejam tomadas para a proteção e prevenção da
dignidade das crianças será sempre uma prioridade absoluta.
Vejo em muitos meios de informação, sobretudo em vosso jornal, a
ampliação do tema de forma excitante, investigando detalhadamente a
vida de algum sacerdote pedófilo. Assim aparece um de uma cidade dos
Estados Unidos, da década de 70, outro na Austrália dos anos 80 e
assim por diante, outros casos mais recentes...

Certamente, tudo condenável! Algumas matérias jornalísticas são
ponderadas e equilibradas, outras exageradas, cheias de preconceitos
e até ódio.

É curiosa a pouca notícia e desinteresse por milhares de sacerdotes
que consomem a sua vida no serviço de milhões de crianças, de
adolescentes e dos mais desfavorecidos pelos quatro cantos do mundo!

Penso que ao vosso meio de informação não interessa que eu
precisei transportar, por caminhos minados, em 2002, muitas crianças
desnutridas de Cangumbe a Lwena (Angola), pois nem o governo se
dispunha a isso e as ONGs não estavam autorizadas; que tive que
enterrar dezenas de pequenos mortos entre os deslocados de guerra e
os que retornaram; que tenhamos salvo a vida de milhares de pessoas
no Moxico com apenas um único posto médico em 90.000 km2, assim
como com a distribuição de alimentos e sementes; que tenhamos dado
a oportunidade de educação nestes 10 anos e escolas para mais de
110.000 crianças...

Não é do interesse que, com outros sacerdotes, tivemos que socorrer
a crise humanitária de cerca de 15.000 pessoas nos aquartelamentos da
guerrilha, depois de sua rendição, porque os alimentos do Governo e
da ONU não estavam chegando ao seu destino.

Não é notícia que um sacerdote de 75 anos, o padre Roberto,
percorra, à noite, a cidade de Luanda curando os meninos de rua,
levando-os a uma casa de acolhida, para que se desintoxiquem da
gasolina, que alfabetize centenas de presos; que outros sacerdotes,
como o padre Stefano, tenham casas de passagem para os menores que
sofrem maus tratos e até violências e que procuram um refúgio.

Tampouco que Frei Maiato com seus 80 anos, passe casa por casa
confortando os doentes e desesperados.
Não é notícia que mais de 60.000 dos 400.000 sacerdotes e
religiosos tenham deixado sua terra natal e sua família para servir
os seus irmãos em um leprosário, em hospitais, campos de
refugiados, orfanatos para crianças acusadas de feiticeiros ou
órfãos de pais que morreram de Aids, em escolas para os mais
pobres, em centros de formação profissional, em centros de
atenção a soropositivos... ou, sobretudo, em paróquias e missões
dando motivações às pessoas para viver e amar.

Não é notícia que meu amigo, o padre Marcos Aurelio, por salvar
jovens durante a guerra de Angola, os tenha transportado de Kalulo a
Dondo, e ao voltar à sua missão tenha sido metralhado no caminho;
que o irmão Francisco, com cinco senhoras catequistas, tenham
morrido em um acidente na estrada quando iam prestar ajuda nas áreas
rurais mais recônditas; que dezenas de missionários em Angola tenham
morrido de uma simples malária por falta de atendimento médico; que
outros tenham saltado pelos ares por causa de uma mina, ao visitarem
o seu pessoal. No cemitério de Kalulo estão os túmulos dos
primeiros sacerdotes que chegaram à região... Nenhum passa dos 40
anos.

Não é notícia acompanhar a vida de um Sacerdote “normal” em
seu dia a dia, em suas dificuldades e alegrias consumindo sem barulho
a sua vida a favor da comunidade que serve. A verdade é que não
procuramos ser notícia, mas simplesmente levar a Boa-Notícia, essa
notícia que sem estardalhaço começou na noite da Páscoa. Uma
árvore que cai faz mais barulho do que uma floresta que cresce.

Não pretendo fazer uma apologia da Igreja e dos sacerdotes. O
sacerdote não é nem um herói nem um neurótico. É um homem
simples, que com sua humanidade busca seguir Jesus e servir os seus
irmãos. Há misérias, pobrezas e fragilidades como em cada ser
humano; e também beleza e bondade como em cada criatura...
Insistir de forma obsessiva e perseguidora em um tema perdendo a
visão de conjunto cria verdadeiramente caricaturas ofensivas do
sacerdócio católico na qual me sinto ofendido.

Só lhe peço, amigo jornalista, que busque a Verdade, o Bem e a
Beleza. Isso o fará nobre em sua profissão.

Em Cristo,



Pe. Martín Lasarte, SDB.